Olá, gigantes!
Em agosto de 2019, Liz Cambage, atleta da WNBA, compartilhou um poderoso relato sobre a sua luta para manter sua saúde mental no portal “The Players Tribune”. Mais do que um relato cheio de verdades, a carta de Cambage é um chamado ao bom senso e sobre como devemos encarar o tema de saúde mental nos dias de hoje.
Nós do BIG3 tivemos a iniciativa de fazer uma tradução livre do texto para o português, de maneira a torná-lo mais acessível. A postagem original em inglês, você pode acessar aqui.
Duas notas importantes:
1 – alguns dos termos em inglês foram mantidos conforme o original. Sendo assim, o termo “DNP”, equivalente a “Did Not Play”, usado para justificar a ausência de um atleta, permanece. Assim como os termos “Rip” e “Riptide”, que no jargão do surfe seriam algo como “pororoca” ou “vala”, essa última bem adequada à história de Liz, mas seguimos conforme o texto original em inglês.
2 – entre 2020 e 2021, a WNBA começou a articular o seu próprio programa de saúde mental para as suas equipes após relatos como o de Liz Cambage e outras atletas. Um passo importante em uma das ligas mais progressistas do mundo dos esportes.
DNP – Saúde Mental, por Liz Cambage
Vocês nos Estados Unidos já ouviram falar de “rip”?
Ou acho que a forma original seja “riptide”. Mas é essa coisa onde, em um momento você pode estar tendo um dia ensolarado normal na praia, nada demais. Você está relaxando, nadando com os seus amigos. E então no momento seguinte – o que você sequer percebe é que apesar de lentamente, sem dúvida a correnteza estava arrastando você oceano adentro. E agora a água está ficando mais e mais profunda… e todos os seus amigos desapareceram… e não parece mais ensolarado… e você não pode se mover… e você não pode respirar… até que de repente é só você, sozinha, sob essas enormes ondas escuras…
E você se afoga.
Essa é uma “rip”.
Também é o mais próximo que eu consigo descrever como é quando eu estou deprimida.
Eu lutei contra problemas de saúde mental – primeiro ansiedade, e mais tarde a depressão da qual a ansiedade pode ser o gatilho – indo e vindo por cerca de metade da minha vida. O que eu não acho que seja novidade para alguém: é algo sobre o qual eu tenho sido honesta a respeito, tanto publicamente quanto particularmente, tanto quanto posso. Tanto que eu acho que quase cheguei a desenvolver esse tipo de… persona ao redor, sabe? É quase como se, à sua própria maneira, minha vida tem sido uma “conversa sobre saúde mental”.
E às vezes é como se não estivéssemos tão avançados nessa conversa como nós pensamos. Estamos confortáveis com a ideia geral de que cuidados com saúde mental são importantes – e dizer às pessoas que você está lidando com questões de saúde mental se tornou bem aceitável. Mas por baixo de tudo isso? Ainda tem um monte de coisas que eu acho que não vemos e não falamos a respeito. Coisas que podem ser feias.
Eu sei que, aparentemente, as pessoas estão “prontas” para conversar sobre saúde mental.
Mas elas estão mesmo?
As pessoas estão mesmo prontas para falar sobre como, começando por volta dos 15 anos de idade, eu iria simplesmente apagar bêbada em algumas noites? Ou que eu acordaria com um IV no meu braço, depois de um fim de semana de festa, incapaz de me lembrar de nada. Ou que minha primeira tentativa de sobriedade foi aos 18 anos?
As pessoas estão prontas para falar sobre como, após eu ter sido draftada na WNBA, eu passei quase todas as noites da minha temporada de novata sozinha, em lágrimas? Ou de todas as vezes em que me tranquei dentro de casa, fugindo do mundo, apenas chorando por horas sem parar? (chamo isso de “Modo de Crise Existencial” – quando ansiedade torna-se depressão e eu me torno essa pilha no chão, convencida de que não tenho valor e sou imprestável.)
As pessoas estão prontas para falar sobre como eu fui colocada em vigilância contra o suicídio em 2016? Como liguei para minha mãe e – na conversa mais difícil que já tive na vida – contei a ela que eu não queria viver mais? E como mesmo agora, mesmo “me sentindo melhor”, eu ainda carrego a mesma vergonha e culpa de ter feito meus entes queridos passarem por uma situação tão terrível?
Eu não acho que até que nós estejamos realmente prontos para se abrir de verdade sobre esses tipos de experiência – até que estejamos prontos para cair na real sobre como a saúde mental pode ser essa batalha escura e até mesmo uma derrota – estaremos prontos para dar o próximo passo nessa conversa.
Se ajuda, vou tentar começar. Aqui estão algumas maneiras – maneiras das quais normalmente não falamos a respeito – onde minha carreira no basquete e a minha depressão cruzaram caminhos.
Minha saúde mental desempenhou um papel em minha decisão sobre onde jogar neste ano. Eu não poderia fazer dar certo, no fim das contas, em Tulsa ou Dallas – no meio desse outro país sem o meu sistema de apoio. Eu me lembro de voar de volta para Tulsa vindo de Melbourne para a temporada de 2012 da W. E quando descemos do avião durante a nossa conexão em Sidney… eu não sei direito como explicar… mas eu simplesmente não consegui embarcar de novo. Eu não poderia voltar.
Eu tinha acabado de competir nas Olimpíadas com a seleção da Austrália. Ganhamos o bronze, mas pelos nossos padrões, nós fracassamos. Eu fracassei. Eu fracassei com o meu país, e com todos que estavam contando comigo. Eu tinha somente 20 anos de idade. Tendo que carregar aquilo comigo para a WNBA, para essa nova temporada quando eu não estava feliz e não me sentia apoiada… com sentimentos de ansiedade da minha primeira temporada agora voltando todos de uma vez… eu entrei em pânico.
Literalmente – eu tive uma crise de pânico no avião.
Eventualmente eu voltei para a W e joguei em Dallas, por conta do meu técnico Fred Williams. Mas tendo Fred sido demitido, eu sabia que o meu apoio tinha ido embora – e que a única maneira para eu permanecer na liga seria se eu estivesse morando perto da minha família na Costa Oeste.
Eu tomo remédios para a minha saúde mental. Sou uma de muitos milhões de pessoas no mundo que estão agora mesmo sob uso de remédios para ajudar a tratar depressão e ansiedade. Tenho tomado essas medicações há anos. Eles mantêm sob controle as minhas dúvidas sobre mim mesma. Eles me permitem me sentir firme em momentos onde meu humor oscilaria entre o topo do mundo e o fundo do poço.. Eles me ajudam a dormir. De verdade, meus remédios simplesmente me ajudam a me sentir como uma versão mais livre e saudável de mim mesma.
Minha saúde mental tem impactado negativamente minha habilidade de fazer o meu trabalho. Primeiro, no sábado contra os Wings, e então de novo na segunda contra o Mystics. Eu peguei um DNP – Descanso… mas aqui vai a verdade sobre o que eu deveria ter dito:
DNP – Saúde Mental
Dois finais de semana atrás foi o All Star Weekend em Vegas. Eles o chama de “intervalo” – mas para as atletas que participam, não é. E como jogadora do time anfitrião, há inclusive uma carga extra de pressão. Eu estive viajando com a seleção australiana pouco antes do fim de semana começar, e saí direto das minhas obrigações com a seleção para uma agenda pronta de eventos e participações. Para completar, alguns amigos próximos de casa vieram me visitar. Foi demais.
E verdade seja dita, muita coisa já aconteceu nesse ano, fora de quadra.
Minha avó estava indo e vindo do hospital nos últimos meses. Vê-la lutando pela saúde dela, tão distante – sentir como se eu não estivesse lá por ela quando ela mais precisou de mim? Machuca.
E também, logo antes do All Star, meu relacionamento duradouro com meu namorado de idas e vindas acabou.
Me senti como se eu estivesse indo para o evento já quebrada.
É difícil: para alguém que viaja tanto quanto eu – que precisa ganhar a vida fora na estrada durante oito meses ao ano – relacionamentos são incrivelmente importantes. Mas ao mesmo tempo, eles são incrivelmente difíceis de se manter.
Ainda assim… são engraçadas as mentiras que podemos contar a nós mesmos. A minha? Era que mesmo com todas essas responsabilidades na minha conta, e pensamentos e estresses na minha cabeça, eu imaginei que ainda estivesse em uma posição onde eu seria capaz de lidar com o fim de semana. Quer dizer – eu estava sóbria há meses. Pensei que eu estaria tranquila.
Pensei errado. O fim de semana virou festa… que virou bebida… que virou exaustão.
E talvez mesmo ali eu teria estado bem – exceto por uma coisa.
Eu estava sem os meus remédios.
Por quê? Bem, por mais estável que os meus remédios permitam meu humor ficar, eles também podem ter um efeito apático. Eu acordo grogue pelas manhãs. Eu me movo mais devagar. Eu não sonho – o que é bastante para mim. Sonhar é a minha maneira de estar em contato comigo mesma. É minha conexão com Deus. E quando eu fico muito tempo sem isso, sinto falta. Então, no início do ano, depois que as coisas ficaram bem por um tempo… eu parei de tomar medicações.
Eu só queria sentir um pouco mais.
Naquele fim de semana, eu senti demais.
Na nossa primeira noite de volta do intervalo, eu tive um jogo péssimo em casa. Eu acertei 1 de 12 – e toda vez em que eu errava um arremesso, eu só lembrava de sentir essa necessidade de me provocar: Você está com medo de fazer um arremesso? Outra decisão ruim, Liz!! Coisas do tipo. Eu questionava tudo. Pensava estar arruinando cada jogada. Então o nosso próximo jogo foi em L.A., e só ficou pior a partir dali. Fiz duas faltas cedo em cerca de 90 segundos – e é engraçado porque depois que qualquer coisa como essa acontece, a torcida sempre pensa que eles estão entrando na minha cabeça. Mas é claro que eu estou bem aqui pensando, Uhh, desculpa! Não há espaço para mais ninguém dizer coisas horríveis na minha cabeça. Nossas vagas estão esgotadas. Já estão ocupadas comigo.
Depois daquele jogo, eu senti como se o meu cérebro estivesse em queda livre.
E vou ser honesta… a partir dali eu simplesmente me perdi.
Me deparei com um corredor vazio fora dos vestiários, ainda usando meu uniforme, e comecei a entrar em pânico. Eu não conseguia respirar. Eu não conseguia parar de chorar. Estava tendo a crise de ansiedade mais incontrolável – um colapso completo.
Eu tive que pedir ajuda.
Meu agente veio e me pegou, me levou de volta para o hotel do time para que eu pudesse tomar remédios para ansiedade. Tentei evitar aquilo a menos que fosse uma emergência, porque meu corpo e minha mente viveriam em um nevoeiro pelas próximas 14 horas. Mas melhor viver em um nevoeiro do que ser carregada pela maré.
É isso que acontece – esse é o ciclo.
E eventualmente ou você o quebra, ou ele quebra você.
Aquela noite me levou a conversas difíceis com algumas pessoas que se importam comigo – e algumas conversas comigo mesma que vinham sendo adiadas há muito tempo. No fim das contas, eu tomei duas decisões. Eu precisava voltar a tomar meus remédios.
E eu precisava tirar um tempo livre.
Então era ali que eu me encontrava: longe do meu time e longe do jogo de basquete, para me focar em me recompor. Começar com a medicação toda de novo significa basicamente ficar na cama 18 horas por dia. Significa se sentir pesada e exausta. E significa se ajustar a uma nova normalidade que requer, na maior parte do tempo, descanso. Muito descanso.
Se recuperar de uma lesão como outra qualquer.
E é por isso que eu quis escrever isso.
Foi muito importante para mim não só “renovar os ares” por aqui. Eu não quis dizer “agora já chega” sobre o que aconteceu para que as outras pessoas parassem de fazer perguntas. Eu não quis gritar “HASHTAG SAÚDE MENTAL!!!!” – e então usar isso para encerrar o assunto.
Eu quis contar a vocês a realidade do que tem acontecido comigo. Porque o que tem acontecido não é um segredo, ou mistério. Não é um grande escândalo.
O que tem acontecido é só… a minha vida.
Uma coisa sobre a qual eu estive pensando muito a respeito nessa semana é a nova regra da NBA – que diz que todo time deve ter um profissional de saúde mental na equipe. Tenho visto muitas pessoas elogiarem a liga pela regra, e por estar tão avançada sobre saúde mental em geral. E eu sou uma dessas pessoas. Acho que é uma grande coisa o que eles estão fazendo, e com certeza vai ajudar seus jogadores. Eles merecem muito crédito.
Mas ao mesmo tempo, eu não vou mentir – fico desapontada que estejamos elogiando alguém pelo “progresso”, quando tantas mulheres estão sendo excluídas dele. Quero dizer… a WNBA não merece esse mesmo programa?
E mesmo indo além da W – mesmo indo além dos esportes: saúde mental não é algo básico? Não é uma dessas coisas onde nós deveríamos apenas decidir que é algo ao qual toda pessoa precisa de acesso, e então… encontrar uma maneira? Toda escola, todo ambiente de trabalho, todo programa esportivo, simplesmente – todo mundo. Todo mundo precisa ter um profissional de saúde mental. É um médico! Vocês me entendem? É literalmente um fisioterapeuta para o seu cérebro.
É tratar alguém como um ser humano.
E isso resume bastante o que eu quis dizer aqui, eu acho. Eu queria deixar todo mundo saber que a minha saúde mental… ela realmente foi parar na rip semana passada. E não foi bonito.
Na verdade foi bem feio.
Mas eu também quis saber que eu não me afoguei. Ainda estou aqui e ainda estou lutando essa batalha no meu dia-a-dia. E com a ajuda da minha família, e amigos, e médicos, e colegas de time e técnicos incríveis e o sistema de suporte do Aces, eu vou continuar lutando.
E eu vou continuar falando a respeito – de uma forma tão verdadeira quanto eu puder.
Provavelmente nós ainda não estamos em um lugar – e provavelmente não estaremos tão cedo – onde a listagem oficial da partida vá dizer algo como DNP – Saúde Mental. Mas enquanto isso… aqui está a atualização médica da Liz Cambage:
Ela estava em observação diária com ansiedade e depressão – e ela ainda está.
Para ser honesta, ela provavelmente sempre estará.
E quer saber?
Está O.K.