Todo mundo conhece um peladeiro que exerce o seu direito protegido pela Constituição de poder reclamar à vontade. É verdade, ele tira o domingo para reclamar. Essa bola está muito oval, esse aro é horrível, pô isso aí é falta, não foi falta, isso aí é andada… O sujeito desafia a lógica de que praticar atividade física é para relaxar. Ele chega com um sorriso no rosto e consegue tirar todo mundo em quadra do sério, incluindo ele mesmo. Mas é claro que todo mundo tem os seus momentos. Reclama-se em quadra o que não se pode reclamar do chefe, desconta-se a frustração com o resto do país na bola laranja. Quem nunca?
E teve aquele dia em que o Rodrigo, um colega gente fina, propôs um famoso “time contra”. Falou em “time contra” sabe como é, né? Não tem playoffs da NBA que chegue perto de um “time contra”. A honra está em jogo e o único dinheiro envolvido é o trocado da passagem. Rodrigo, que por sua vez mora em Engenho Novo, longe da galera aqui da Zona Oeste do Rio de Janeiro, propôs um meio-termo. E por meio-termo entenda-se “igualmente longe para todos os envolvidos, de maneira que todos possam reclamar”. Nosso confronto seria no Aterro do Flamengo.
Começamos então a escalação do nosso time. Critérios: quem tem a menor possibilidade de acordar virado numa manhã de domingo. Decidimos por uma formação compacta. Bastavam cinco e um sexto homem para revezar em quadra (ah, o vigor da juventude). Combinamos três da Praça do Canhão em Realengo e três da Praça do Triângulo em Senador Camará. Quem joga na Praça do Triângulo por natureza é um velocista, pois todo contra-ataque na Praça do Triângulo é um tiro de 100m rasos. Quem fez aquela quadra devia estar com muito cimento sobrando e pensou “vou estender o comprimento dela e ver até onde vai”.
Combinamos de nos encontrar lá no Aterro do Flamengo. Nós de Realengo íamos de trem, reclamando do horário, mas também empolgados tentando adivinhar a escalação do time do Rodrigo. Chegamos na Central reclamando da falta de integração entre trem e metrô, pois o jovem valoriza o trocado da passagem. Reclamei também com o Bruno que apontou a direção para um senhor que lhe pediu informação. O senhor era cego. Reclamei também quando chegamos no Aterro do Flamengo, apesar do lindo dia que fazia. Éramos os que moravam mais longe e, obviamente, fomos os primeiros a chegar.
Mas as coisas melhoram conforme a gente vai aquecendo e tirando as bolas das mochilas. Conforme o time do Rodrigo ia chegando (também reclamando do calor) avaliávamos “olha, acho que dá pra ganhar”. Tínhamos uma boa vantagem em altura. Principalmente com a chegada da galera do Triângulo completando o nosso time. A gente tinha o Coutinho.
Algumas coisas que precisam ser ditas sobre o Coutinho: Coutinho é daqueles que coça o calcanhar sem dobrar o joelho. É o nosso gigante gentil do alto dos seus dois metros. Coutinho também é meio hippie, daqueles que cumprimentam a natureza, acende incenso, cuida de plantinha. Coutinho também nunca tinha conhecido o Aterro do Flamengo, vividão, nascido e criado em Camará. Coutinho parecia estar na Disney. Ele não conseguia esconder o entusiasmo diante do céu azul, do verde das árvores e da grama, e a brisa vindo do mar. A brisa que a gente sente jogando no Triângulo é de bosta fresca de cavalo. E ai de quem reclamar.
O jogo começou. Nosso time improvisado tinha uma bela duma sintonia. Um dos jogadores do time do Rodrigo teve a audácia de sair reclamando porque ninguém passou a bola pra ele e foi procurar outra quadra para jogar. Levamos a partida. O Coutinho não parava de sorrir. Nas palavras dele, “quem morava num lugar daqueles (o Aterro), não tinha direito de reclamar de nada na vida”. Lá pelo fim do dia a gente soube que naquela semana o avô dele lutava contra depressão e, por consequência, o resto da família lutava junto. Às vezes a gente precisa de um basquete, um lugar bacana e de bons amigos para perceber: a gente não pode reclamar de nada mesmo.