O dia começa com um sol meio tímido, dá pra sentir o friozinho da madrugada. Caminho pela rua principal aqui do bairro no sentido da estação. Dobro a rua que faz esquina com o posto de gasolina abandonado. Atravesso a rua em direção ao portão cinza. Toco o interfone da “Casa 2”, que eu sempre confundo com a “Casa 1” e inclusive já tive que pedir desculpas por acordar alguém que eu não conheço tão cedo pela manhã. Ela já vai, me avisam pelo interfone. Penso que deve estar se despedindo dos pais, pedindo benção. Então o portão cinza se abre e eu ouço bom dia, amigo! Hortência.

Já houve tempos em que o pai ou a mãe dela, ou os dois juntos, chegavam no portão e passavam mil e uma recomendações. Com o tempo, as coisas ficaram mais rotineiras e eles já sabiam que Hortência tinha o seu tempo de se dedicar ao basquete dos fins de semana. Ela e seu inconfundível rabo de cavalo, tênis, calça legging, toalha (para os dias de calor. Quase todos), garrafa d’água e a camisa do Charles Barkley da época em que o jogador defendia o Houston Rockets. Visual bem despojado. Eu e Hortência íamos para a quadra conversando sobre a vida, como iam as coisas na escola, quem já foi e quem ainda estava por lá. Atravessávamos a passarela da estação e caminhávamos mais um pouco. Imaginávamos quem seria o último ou a última a chegar em quadra. Sabe como é a minha amiga, né? Gosta de dormir – ria a Hortência.

Chegando na quadra, nós nos alongávamos, nos aquecíamos e começávamos a praticar arremessos. Hortência sempre me deu um banho em matéria de arremesso. Mal sabia ela que eu era quem ficava olhando a sua mecânica. Engana-se quem pensa que pelo seu tamanho, faltava a ela a força necessária para arremessar. Hortência livre para arremessar era sempre um perigo. Por mais que eu procurasse os arremessos mais fáceis, próximos ao aro, bandejas… Hortência não se intimidava com a longa distância. Na verdade eram esses pontos que ela procurava para aparecer livre, receber a bola e então… chuá! Só a rede. Não raro outras pessoas apareciam para jogar. Alguns sabiam que estaríamos ali por aquelas quadras, pois basquete do fim de semana era lei. O Charles, um peladeiro cascudo que morava e jogava por ali, do alto dos seus quase dois metros, quando aparecia para bater uma bola com a gente, ao ver minha amiga arremessando soltava um sorriso e exclamava: Hortência! – dispensava comentários.

Mas é claro que a Hortência que o Charles exclamava não era a Hortência que estava ali em quadra com a gente. Não, na verdade o nome dela é Larissa, igual a cantora de Honório Gurgel. É que obviamente quando você fala, por exemplo, que alguém é o Michael Jordan de alguma coisa, você sabe que aquela pessoa é muito boa no que ela faz, seja basquete ou porrinha. Mas você chamar uma mulher que joga basquete de Hortência, aquela Hortência, a Marcari, da seleção brasileira, das Olimpíadas e do Pan Americano, do Hall da Fama do Basquete, é algo muito especial. É não só atestar excelência, é quebrar barreiras. É colocar no simples ato de pegar a sua bola de basquete e jogar a pelada do fim de semana, com outras mulheres e outros caras, um sabor muito mais gostoso.

Conheci outras Hortências por aí, lógico. Hortências que, sim, gostavam de dormir. Hortências que acordavam bem mais cedo para estar em quadra e acabavam sendo as primeiras a chegar. Hortências que queriam começar a aprender a jogar. Hortências que faziam projetos para ensinar essas outras Hortências. Hortências que levavam o filho para ver a mãe jogando e, quando nos dávamos conta, o filho estava em quadra atrás da mãe, correndo sem jeito por conta das fraldas. Hortências que gostavam de contar as histórias dessas outras Hortências em podcast.

Hortência também é nome de flor (só que segundo o dicionário, é com a letra “s”). Penso eu que nosso país ainda precisa descobrir como cultivar melhor as suas. Embora aquela cujo nome está eternizado no Hall da Fama seja única, creio que ainda temos espaço para tantas outras mais.

Para Larissa Marques, para sempre Hortência

Eis aqui alguém levando uma canseira – Praça Guilherme da Silveira – Ninguém sabe se Bangu ou Padre Miguel – Rio de Janeiro – RJ

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